Entre a teoria e a prática existe um vale gigante que os separa. Infelizmente, não deveria ser assim, mas todo contador que trabalha com pequenas ou médias empresas sabe que muitos clientes se esquecem ou não desejam encaminhar a documentação para a contabilidade, em especial os extratos bancários.
Mas o que é preciso saber sobre isso?
Primeiramente, é necessário saber que a escrituração contábil regular é uma exigência não só prevista no Código Civil, artigo 1.179, como está prevista também na Lei das Sociedades Anônimas e nas Normas Brasileiras de Contabilidade, e é atividade exclusiva do Contador, conforme prevê o Decreto-Lei 9.295/46.
Se as normas que obrigam a manutenção da escrituração contábil regular não são suficientes para demonstrar a importância de mantê-la, vale lembrar que bancos, fornecedores, órgãos públicos em processo de licitação, e investidores se baseiam nas demonstrações contábeis, que só podem ser obtidas por meio de uma escrita regular e com base em TODOS os documentos contábeis, incluindo os extratos bancários. Não tem como fazer “meia” contabilidade. Ou ela se baseia em todos os documentos, ou ela está imprestável por não ser fidedigna.
Se mesmo diante de todo esse cenário, ainda não foi possível entender as consequências de não se manter a contabilidade regular, em especial da movimentação financeira e bancária, saiba que a Receita Federal do Brasil poderá desconsiderar a apuração pelo Lucro Presumido ou Lucro Real, e aplicar o arbitramento na hipótese de constatar que a contabilidade a que está obrigado não é suficiente para identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária. Isto está previsto no artigo 603, inciso III, alínea “a” do Decreto nº 9.580/18, como pode ser observado abaixo:
Art. 603. O imposto sobre a renda, devido trimestralmente, no decorrer do ano-calendário, será determinado com base nos critérios do lucro arbitrado, quando (Lei nº8.981, de 1995, art. 47; e Lei nº 9.430, de 1996, art. 1º):
…
III – a escrituração a que o contribuinte estiver obrigado revelar evidentes indícios de fraudes ou contiver vícios, erros ou deficiências que a tornem imprestável para:
a) identificar a efetiva movimentação financeira, inclusive bancária; ou
No caso de empresa enquadrada no Simples Nacional, a ausência de escrituração da movimentação financeira, inclusive bancária, é hipótese de desenquadramento deste regime de tributação, e pode ser requerido pela própria Receita Federal, como se pode observar no artigo 29, inciso VIII, da LC nº 123/06:
Art. 29. A exclusão de ofício das empresas optantes pelo Simples Nacional dar-se-á quando:
VIII – houver falta de escrituração do livro-caixa ou não permitir a identificação da movimentação financeira, inclusive bancária;
Na hipótese de desenquadramento de ofício pela ausência de escrituração da movimentação financeira, inclusive bancária, a exclusão produzirá efeitos a partir do próprio mês em que incorridas, ou seja, pode ser retroativa. Além disso o desenquadramento por este motivo impede a opção pelo regime diferenciado e favorecido desta Lei Complementar pelos próximos 3 (três) anos-calendário seguintes. Este prazo poderá ser elevado para 10 (dez) anos caso seja constatada a utilização de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento que induza ou mantenha a fiscalização em erro, com o fim de suprimir ou reduzir o pagamento de tributo apurável segundo o regime especial.
Este desenquadramento de ofício, quando ocorre, é objeto de publicação no Diário Oficial da União, como se pode observar em alguns atos selecionados (vide abaixo) para exemplificar e comprovar que de fato há desenquadramento quando constatada a ausência de escrituração da movimentação financeira:
Ato Declaratório Executivo n° 26, de 9 de abril de 2019
Ato Declaratório Executivo DRF/REC nº 98, de 13 de setembro de 2018
Ato Declaratório Executivo DRF/REC nº 102, de 19 de outubro de 2017
Ato Declaratório Executivo DRF/REC nº 118, de 24 de novembro de 2016
Ato Declaratório Executivo DRF/REC nº 103, de 10 de outubro de 2016
Ato Declaratório Executivo DRF/REC nº 99, de 25 de abril de 2014
Por fim, cabe destacar que a Receita Federal poderá verificar facilmente a inconsistência entre o saldo das contas bancárias apresentados no Balanço Patrimonial com o real saldo bancário mantido nas instituições financeiras, uma vez que ela recebe semestralmente as informações de saldo inicial, total de débitos, total de créditos e saldos finais, das contas bancárias, através de uma declaração chamada e-Financeira que é entregue pelos Bancos (IN RFB nº 1.571/15). Com isso, ela pode cruzar a e-Financeira entregue pelos Bancos com a DEFIS ou ECF entregue pelos contribuintes PJs.
Desta forma, verifica-se que a manutenção da contabilidade regular não só é necessária e imprescindível para o processo de gestão da empresa, como é importante para os demais usuários desta informação, a exemplo dos bancos, investidores, fornecedores, órgãos licitantes, entre outros. Além de imprescindível ela é obrigatória segundo o Código Civil, a Leis da SAs e as Normas Brasileiras de Contabilidade, e pode acarretar em consequências bem desagradáveis no âmbito tributário federal se não praticada com rigor exigido, em especial no que diz respeito a identificação da movimentação financeira e bancária.
Além das consequências tributárias, poderá ocorrer responsabilização civil e criminal dos administradores e seus contadores, entretanto isto é assunto para outro artigo, que publicarei em breve.
Fonte: Juliana Maurilia Martins com Legislações citadas no Texto